Entrevista
'Governo espantou as montadoras que viriam ao país’
Presidente da chinesa JAC Motors, Sergio Habib faz um raio-X do setor automotivo após as medidas protecionistas implantadas no governo Dilma. O diagnóstico: deu tudo errado.
Ana Clara Costa
Sérgio Habib, presidente da JAC Motors no Brasil (Alex Silva/Estadão Conteúdo)
Desde 2011, uma série de medidas protecionistas foi implementada, como aumento de impostos sobre carros importados e exigência de uso de conteúdo nacional para as fábricas interessadas em se instalar no Brasil.
Hoje, percebe-se o tamanho do erro. Mesmo com toda a bondade petista, vendas e produção despencam mês a mês. A chinesa JAC Motors vivencia como nenhuma outra os efeitos das medidas desastradas.
A companhia havia anunciado a instalação de uma fábrica no Brasil semanas antes do aumento de 30 pontos porcentuais do imposto sobre produtos industrializados (IPI) sobre os carros importados, em setembro de 2011.
A ideia era importar veículos ao longo de três anos para então começar a produzi-los no país.
O novo IPI inviabilizou as importações e a conjuntura ruim atrasou a instalação da fábrica. Em entrevista ao site de VEJA, o presidente da JAC, Sérgio Habib, lamentou a situação.
“As medidas dificultaram a entrada de novas montadoras. O governo quis que o empresário se casasse com o Brasil antes de namorá-lo. E ninguém mais quer correr esse risco”.
O novo regime automotivo instaurado pela presidente Dilma, também chamado de Inovar-Auto, fracassou?
O novo regime automotivo instaurado pela presidente Dilma, também chamado de Inovar-Auto, fracassou?
Ele não atingiu o objetivo do governo porque, em vez de facilitar, dificultou a vinda de novas fábricas ao Brasil.
Tanto a JAC quanto a Chery já haviam anunciado fábricas no país antes do Inovar-Auto e antes do aumento do IPI.
Mas as novas empresas não vieram. BMW, Jaguar, Mercedes e Audi já estavam no Brasil como importadoras e iam fazer fábrica, com Inovar-Auto ou sem.
Já outras marcas asiáticas, como a Wulling e a indiana Tata, não vieram e não vão vir tão cedo.
Por quê?
Por quê?
Para montar uma operação em qualquer país, primeiro é preciso ver a aceitação do produto e testar o mercado como importador.
Depois de testar, ocorre o investimento. Foi assim na década de 1990 com Toyota, Citroen, Honda, Peugeot, Renault e Nissan.
A Citroen importou carros durante 10 anos e só então fez a fábrica. A Peugeot, durante nove anos.
A Toyota começou a importar em 1991 e só em 1999 construiu a fábrica. Todas elas ficaram cerca de uma década importando antes de construir.
Hoje, com o Inovar-Auto, você não pode importar sem ter um projeto de fábrica. Ou seja, ele exige que uma empresa se case com o Brasil antes de namorá-lo.
E essa não é a lógica para nenhuma empresa. Ninguém topa. O Brasil exige do empresário um cheque de 500 milhões de reais para a construção de uma fábrica sem que ele esteja familiarizado com o mercado brasileiro. Isso não faz sentido para ninguém.
A única forma de testar é pagar o novo IPI? Sim, mas isso é inviável. Os 30 pontos porcentuais que o governo aumentou em 2011 equivalem a um imposto de importação de 85%.
A única forma de testar é pagar o novo IPI? Sim, mas isso é inviável. Os 30 pontos porcentuais que o governo aumentou em 2011 equivalem a um imposto de importação de 85%.
Nenhum país decente pratica uma alíquota como essa. E não compensa porque o consumidor não vai pagar.
A única forma de importar é por meio de cotas que o governo estabeleceu ao criar o Inovar-Auto.
Mas essas cotas funcionam apenas para marcas que já estavam no país, como as de automóveis de luxo, por exemplo.
Além disso, o limite de cotas é de 4.500 carros por ano, o que é insignificante para um mercado de 3,5 milhões de automóveis como o Brasil.
O que é pior para o setor: a exigência de instalação de fábrica ou as regras de conteúdo local?
O que é pior para o setor: a exigência de instalação de fábrica ou as regras de conteúdo local?
As regras que regulam o conteúdo local usado na fabricação dos carros, para que se consiga um desconto no IPI, são muito retrógradas.
Não é papel do governo controlar se o farol do carro que estamos usando foi fabricado no Brasil, na China ou na Alemanha. A empresa tem de comprar o farol onde lhe for mais conveniente.
Mas o governo vai além: quer saber se o espelho retrovisor e até mesmo o motor responsável por movimentar o espelho são fabricados no Brasil.
Por isso decidiu criar o Inovar-Peças, para estimular a cadeia de suprimentos. Mas, como controlar esse tipo de detalhe é algo dificílimo, o projeto ainda não saiu do papel.
É possível para uma montadora estrangeira recém-chegada cumprir as metas de conteúdo local?
É possível para uma montadora estrangeira recém-chegada cumprir as metas de conteúdo local?
No caso da JAC, vamos cumprir as exigências de conteúdo local não porque o governo quer, mas sim porque, no nosso caso, compensa e é possível.
Agora, se sou a BMW, é óbvio que vou importar meu motor da Alemanha. Não faz sentido o governo exercer poder sobre isso. Nenhum país é bom em tudo.
Se a gente quer ter um país competitivo, temos de nos especializar em algumas coisas e fazê-las bem, e barato.
Quando se fecha o país, força-se as empresas a tomar decisões baseadas em decretos, em vez de bom-senso.
Os preços dos carros subiram desde a criação do Inovar-Auto, em 2012?
Os preços dos carros subiram desde a criação do Inovar-Auto, em 2012?
Nos últimos cinco anos, os preços de carros não subiram muito. Começaram a subir este ano.
O que ocorreu foi que, quando a indústria de veículos passou de 2,5 milhões para 3,5 milhões de carros, os ganhos com produtividade permitiram que o aumento da produção em 1 milhão de veículos compensasse a inflação e os gastos com reajustes salariais.
Agora que o mercado estagnou, a empresa tem aumento de despesa, tem de reajustar salário de funcionários, pagar o reajuste do aluguel, do preço da energia. Tudo subiu, mas a produção não. Então, agora, percebe-se o aumento de preços.
E se houvesse mais concorrência?
E se houvesse mais concorrência?
Seria a única forma de fazer com que os preços dos carros subissem menos que a inflação. Ou não subissem.
A tendência, quando se é empresário num país fechado, é passar mais tempo em Brasília tentando defender seus interesses do que na fábrica tentando diminuir custo.
E tem o custo Brasil, que piora o cenário. Levar um contêiner da fábrica da JAC de HengFeng para Shangai, na China, o que corresponde a uma distância de pouco mais de 500 quilômetros, custa cerca de 500 reais.
No Brasil, transportar um contêiner de São Paulo ao Rio de Janeiro custa 1 900 reais. O nosso país está muito torto. Para compensar esse custo de logística, o dólar tinha que estar custando 8 reais.
A imagem do Brasil para o empresário estrangeiro está arranhada?
Quando trouxe a JAC para o Brasil, a intenção era importar 30 mil carros por ano por três anos, para depois construir uma fábrica com capacidade para 100 mil carros.
Minha esposa, que é mineira, me disse para tomar cuidado com a ousadia. Mas eu então pensei: há muitos anos não se muda a regra do jogo no Brasil. Fernando Henrique e Lula não mudaram.
Sabe o que aconteceu?
Ela tinha razão. O que é uma pena, pois mudar as regras do jogo no meio da partida, conforme o placar, espanta o empresário, que acaba não investindo mais nada. O espírito animal do empresário está na toca.
Quem quer investir num país onde não se conhecem as regras do jogo, onde tudo é incerto?
O pior é que esse sentimento é generalizado. Mudaram as regras no setor elétrico, automotivo, de infraestrutura.
E depois reclamam que poucos se interessaram pelas privatizações. Numa escala mais ampla, isso trava o país.
Por que o mercado consumidor de veículos está tão ruim?
Nada afeta tanto as vendas quanto a alta dos juros e a falta de confiança no emprego. Se a montadora aumenta o preço do carro de 3% a 4%, o efeito na prestação é muito menor do que quando a Selic passa de 7,5% para 11,5%.
E esse impacto é tão significativo justamente porque uma minoria compra carro à vista. Cerca de 65% são financiados.
E, justamente porque são financiados, um consumidor não vai se comprometer com a compra de um bem durável caro se não tiver absoluta certeza que terá emprego para conseguir pagar as parcelas.
Hoje, as pessoas estão com medo do futuro. O que muitos têm feito é trocar de carro, mas por um usado, não zero.
Assim, se arriscam menos, pois gastam menos também. Como resultado, o mercado de carros usados subiu 12% em 2014, enquanto o de carros zero caiu mais de 3%.
A menor oferta de crédito também ajudou nessa piora?
A menor oferta de crédito também ajudou nessa piora?
Não, de forma alguma. Os bancos não estão mais restritivos hoje do que um ano atrás. O que acontece é que os juros estão mais caros e isso restringe o acesso ao bem.
Há ainda a questão da inadimplência, que não é um problema de agora. Desde que a economia começou a desacelerar, três anos atrás, os bancos estão mais rígidos na hora de avaliar o cliente que pede financiamento automotivo. Não é algo que tenha começado em 2014, então não se pode culpá-los.
A Copa teve alguma influência no mercado de veículos?
A Copa teve alguma influência no mercado de veículos?
Sim, e relevante. As vendas caíram 17% em relação ao ano passado. Ninguém trabalha, ninguém faz nada. No Rio de Janeiro tivemos apenas 15 dias úteis no mês.
Quem consegue vender diante desse cenário?
A Copa do Mundo, para quem não tem restaurante, hotel ou bar, foi terrível. Há municípios que decretam feriado em todos os dias de jogos.
Como será a estrutura da fábrica JAC no Brasil?
Está sendo construída em Camaçari, Bahia, e dois terços do negócio pertencerão aos chineses.
Eu fico com um terço. Inicialmente, a participação seria o oposto, pois pegaríamos financiamento do BNDES para comprar o maquinário, pelo programa PSI. Mas mudamos de ideia.
Como Brasil é caro, o BNDES dá dinheiro a taxas subsidiadas. Em vez de você ter uma taxa normal de juros, você tem uma indústria não competitiva e juros subsidiados.
O problema é que mesmo assim não compensa. Uma prensa fabricada no Brasil, mesmo com juros baratos, é mais cara do que uma prensa nos Estados Unidos, na Coréia ou na China.
No passado, os juros do BNDES eram mais realistas, mas o banco financiava maquinário estrangeiro.
A fábrica da Hyundai foi toda construída com máquinas importadas e com dinheiro do BNDES.
No nosso caso, a conta não fechou. Vamos trazer máquinas de fora, inclusive da Alemanha, pagando menos. Só que o capital será dos chineses, por isso a troca de participação societária.
Os chineses estão decepcionados com o Brasil?
A maior frustração é a mudança de regra. O chinês é muito prudente, estuda o país profundamente e essas mudanças assustam.
A JAC recebeu ordem do governo chinês para crescer seu negócio. Para onde eles iriam crescer?
O Brasil é um destino óbvio. Agora, o governo pensa que o mercado interno é patrimônio do povo brasileiro e que tem de ser usado por empresas que estão fixadas no país.
E isso faz com que a gente pague pelas ineficiências que a falta de concorrência traz. O Inovar-Auto pode até ter sido feito com a melhor das intenções.
Mas não precisava disso, não precisava de decreto para convidar um empresário a investir aqui.
Todos que se instalaram já tinham planos. Agora, o Inovar-Auto acaba em 2017. Qual empresa que jamais trabalhou em solo brasileiro começaria a planejar sua vinda com base num regime que termina em três anos, ainda mais se permanecer um governo que tem o histórico de mudar as regras do jogo?
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